Uma carta de agradecimento de Katherine Maher, diretora-executiva da Fundação Wikimedia
Este texto foi inicialmente publicado em original blog post on Diff, sob CC-by-sa-3.0. 16 de abril de 2021 por Katherine Maher
Olá amigos(as), caros Wikimedianos,
Tem sido o prazer e felicidade da minha vida fazer parte deste momento com você, durante estes 7 anos. [1] Eu entrei no movimento da Wikimedia como um crente da cultura livre, do open source e do conhecimento livre. Eu deixo meu trabalho na fundação hoje sabendo que o movimento da Wikimedia segue firme nestes conceitos, e, às vezes, até algo maior.
Ser um Wikimediano é abracar a curiosidade e a falibilidade humana, nossa generosidade e irascibilidade. É olhar para um mundo em que nos é dito que é dividido - por fronteiras arbitrarias, conquistas linguísticas, medo do desconhecido - e, em vez disto, ver nosso interesse comum. É saber que cada um de nós é um narrador falho e não cofiável, e acreditar que o melhor remédio para nossas falhas intrínsecas é juntar nossas falhas individuais com nossas forças coletivas.
Na primavera de 2016, eu dividi uma pizza em Berlim com (nosso então futuro, agora ex-presidente do conselho) Christophe Henner. Nós estávamos participando da Conferência Wikimedia um mês depois do meu cargo de diretor-executivo interino, e acabamos um dia desafiador de reuniões plenárias que nos uniu como uma comunidade em catarse. Christophe era candidato para uma cadeira no conselho da Fundação Wikimedia. Ele me disse, "Para que estamos aqui?"
Eu não sabia o que ele queria me dizer, então eu apenas disse a ele o que eu pensava. "Estamos aqui para fazer o mundo melhor." Foi uma resposta clichê, mas verdadeira para mim. Ele riu, recostou-se em sua cadeira. "Sim"
Isto sempre foi o que eu entendi na parte não declarada da nossa visão. "Imagine um mundo onde cada indivíduo humano pode abertamente compartilhar a soma de todo seu conhecimento." Isto é espetacular, inspirador, aspira ambição, mas também há a falta de algo critico. Ao passar destes 7 anos, eu imaginei este mundo todo dia. E todo dia, eu perguntei a mim mesmo, "por quê?" Por que a visão de conhecimento livre importa? O que acontece depois? Qual mudança, nós fizemos no mundo?"
Mesmo após sair, eu continuo me questionando isto. Assim como você ira continuar se trabalho aqui, como colegas, contribuidores ou voluntários, eu lhe para que vocês questionem também. Com tudo que você faz, e toda a contribuição que você fez, tudo o que construiu. O que estamos fazendo aqui? Os nossos valores, nossas estruturas, nossas práticas, e nossas construções servem a um proposito? E como nos garantimos que eles vão permanecer vivos e ativos em nossos projetos e nossa visão?
O ex-presidente da Wikimedia Chile, Marco Correa, diria, "O conhecimento pode ser neutro, mas o ato não." Eu sempre entendi que ele quis dizer que embora nossos projetos se esforcem para serem mais precisos, verificáveis e neutros, nosso movimento nunca sera imparcial. Nós sempre nos mantemos sólidos nesta lista de valores: liberdade de investigação, expressão e reunião, o direito a privacidade da memória, e o valor da dignidade de todo humano. Nós defendemos eles sob pressão, e devemos continuar firmes.
Nunca devemos esquecer de como é revolucionário o ato de produzir conteúdo livre em primeiro lugar. Eu sempre fiquei impressionado pelas inúmeras motivações que trazem as pessoas para este movimento. Há aqueles que escrevem sua linguagem no futuro, sua identidade na consciência pública, que usam nossos projetos para lidar com a injustiça histórica. Há aqueles que editam na Wikipédia por que é um ato de autodeterminação em lugares onde a informação e usada para suprimir e submeter.
Se nos permitirmos acreditar que somos simplesmente uma enciclopédia livre, arriscamos perder de vista nosso trabalho. O conhecimento sempre foi uma ferramenta de poder – grandes impérios e riquezas foram construídas com seu serviço, e grandes injustiças foram feitas em seu nome. A própria ideia de libertar o conhecimento do poder, dissociá-lo do acesso e da riqueza, e colocar sua construção, utilidade e valor nas mãos de cada pessoa do planeta é fundamentalmente radical.
A própria Wikimedia é um ato radical. É um verbo, uma ação constante de interrogação, revisão e evolução. Isso derruba a história, desafia o status quo. É a confiança de nos perguntarmos por que acreditamos no que acreditamos e se nosso conhecimento pode mudar no futuro. É a convicção de defender nossos valores contra pressões e ameaças, enquanto debatemos vigorosamente entre nós se esses valores continuam a servir o mundo. É a humildade de cooperar, colaborar e aprender com os outros.
Alguém perguntou outro dia: “qual é o maior desafio que a Wikimedia enfrenta?” Minha resposta foi a mesma do meu primeiro dia. Nosso maior desafio somos nós mesmos. Nosso sucesso, nossa complexidade, nosso tamanho – pode ser fácil acreditar que vamos durar para sempre em nosso momento atual, nos ver como um site em vez de um movimento global, ou aceitar que nossos nos são muito complicados para se desfazerem. Muitas vezes é mais fácil e confortável nadar nos redemoinhos da evolução incremental do que enfrentar a urgência da mudança coletiva.
Mas realizamos nossa missão contra grandes adversidades e é essencial que tenhamos uma visão clara dos riscos e das oportunidades. Existem os desafios da competição e da escassez: operamos em um dos setores mais capitalizados e competitivos da história da civilização (tecnologia digital), negociamos um dos ativos mais valiosos (mas não rivais!) da humanidade (conhecimento). Aspiramos a servir o mundo inteiro de forma equitativa, apesar de todas as maneiras pelas quais o próprio mundo constrói barreiras implícitas e explícitas a esse objetivo.
Há também as oportunidades, elas próprias uma forma de desafio. Vemos mais pessoas conectadas ao redor do mundo, mais comunidades em busca de conhecimento, mais idiomas representados, mais necessidade de conhecimento geral confiável e questões mais nítidas e urgentes de poder, representação e agência. Vemos um aumento na apreciação do valor do conhecimento na sociedade e da importância de facilitar o acordo até mesmo nas questões mais controversas. Se vamos aproveitar ao máximo esses momentos, depende de nós.
Se quisermos enfrentar esses momentos, teremos que encontrar novas forças. Devemos ser mais inteligentes, mais ousados, simplesmente melhores do que jamais fomos. Devemos ser intransigentes em nossa generosidade e inflexíveis em nossa excelência. Devemos ser mais expansivos, abundantes e inclusivos. Devemos lidar com as maneiras pelas quais falhamos no passado, incluindo a instrumentalização da participação e a recapitulação de cânones excludentes às custas de uma representação verdadeiramente global. Devemos valorizar nossa integridade e independência, simultaneamente, em que entendemos nossa interdependência.
Nos últimos anos, nosso movimento começou a fazer exatamente isso. Estamos reconsiderando nossa definição de “comunidade” e “colaborador”. Temos interrogado nossa compreensão do que é o conhecimento, como ele é construído e quem é representado. Temos pressionado pela participação e emancipação de geografias, idiomas e demografia sub-representados. Temos nos perguntado se os paradigmas de notabilidade e verificabilidade enciclopédicas podem sustentar nossa missão, crescimento e relevância. Exploramos o que em nosso trabalho e práticas atuais podem precisar evoluir para podermos viver significativamente em nossa missão de cada ser humano.
Temos feito perguntas não apenas sobre nosso conhecimento no ecossistema da Wikimedia, mas sobre os meios pelos quais realizamos nossa missão. Sempre nos comprometemos com a arquitetura e o código abertos, mas esses compromissos têm sido passivos — ferramentas comuns, regras comuns. O que significa ser ativamente aberto? Ir além do protocolo para a prática, do padrão para o valor? Como garantimos que nossa infraestrutura técnica e experiências permitam a participação, agência e propriedade de todos, em todos os lugares? Como nossos projetos podem liderar em privacidade, segurança e abertura à luz de seu exemplo?
De uma forma muito real, tudo isso está em nossas mãos e nas mãos de qualquer um que queira participar. Nossos projetos não são propriedade de ninguém, mas são propriedade de todos nós. Eles são editados, em média, 350 vezes por minuto, representando a oportunidade, a cada momento do dia, de ser um trabalho em andamento – aspirar a melhores versões de nosso movimento, nossos projetos, de nós mesmos. Mudar em resposta ao mundo ao nosso redor. A Wikimedia muda à medida que nós mudamos, e a mudança é o que fazemos dela.
Este é um convite constante – e obrigação – de nos fazermos e refazermos. Os valores que nos serviram desde o primeiro dia nos impulsionam para o futuro? As decisões que tomamos, como funcionários, voluntários, líderes de movimentos, membros da comunidade, estão a serviço do nosso propósito? Como adaptamos nosso trabalho para o mundo em que vivemos, mantendo nossa visão para o mundo que buscamos? Em que estamos crescendo? Para que estamos "aqui"? Qual é o sentido, o propósito, do conhecimento livre?
As respostas a essas perguntas podem mudar, mas a maneira como chegamos a essas respostas não deve. Somos antes de tudo uma comunidade e devemos chegar às nossas respostas por meio de diálogo e consulta abertos. Não podemos contornar as partes difíceis, devemos passar por elas para construir as partes duradouras. E a única maneira de fazer isso é nos comprometendo com consistência, comunicação e continuação de discussões difíceis, como aquelas levantadas pela estratégia do movimento – questões de poder, agência, descentralização e autonomia. É na busca das respostas a essas perguntas que encontraremos as maneiras pelas quais nosso movimento prosperará.
Devemos ver mutualmente como administradores e aliados mútuos, encontrando os meios para discordar enquanto valorizamos uns aos outros como pessoas unidas em nossa missão. Devemos praticar compaixão, coragem e bondade uns pelos outros e por nós mesmos, e aceitar a imperfeição no espírito da evolução. Como funcionários, devemos mostrar respeito aos nossos colegas voluntários como parceiros de pleno direito. Como voluntários, devemos retribuir o sentimento aos funcionários da Fundação e afiliados. Devemos partir o pão juntos, resolver problemas juntos e ver mutualmente como iguais.
Ser um Wikimediano é colocar sua fé na boa vontade de pessoas que você nunca conheceu. É acreditar no poder de uma ideia para conectar uma comunidade; ser um humanista incorrigível, sábio para nossas falhas, mas voltando a cada dia para fazer melhor. Nós não apenas buscamos fazer a coisa radical de tornar o conhecimento disponível gratuitamente, nós confiamos no mundo para usá-lo bem. Contribuir de boa-fé, ler-nos criticamente quando necessário, doar para nos manter em movimento e criticar-nos quando justificado.
Colocamos nossa confiança no mundo, e eles a colocam de volta em nós. Servimos como administradores, prevendo que nosso trabalho deve apoiar e sustentar o conhecimento livre como um bem público nas próximas décadas. Seguimos contra as probabilidades implacáveis e, de alguma forma, continuamos em movimento. Jogamos nossa sorte juntos, nos comprometemos com nosso sucesso e fracasso e aceitamos que nosso progresso é um trabalho em andamento. Acreditamos que podemos mudar o mundo, porque já o fizemos.[2]
Sou grato a todos vocês por este tempo que tivemos e pelas maneiras pelas quais sua paixão, empatia e determinação expandiram meu mundo. Tive a sorte de fazer amizade ao longo da vida com muitos de vocês, e acredito que ainda há muitas amizades pela frente. Enquanto deixo a Fundação, não deixo o movimento.
Temos a sorte de viver no glorioso banquete móvel da Wikimedia. Me ensinou que raramente há adeus, apenas até nos encontrarmos novamente.
Vejo vocês por aí Wikis!
Catarina